segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Para você entender

No fim das contas, pouco importa se a rua, a lua, a porta é torta nessa noite morta...

Já que o farol ilumina o mesmo caminho que outrora havia esquecido...
Ou fugido...

E nessa estrada pouco iluminada observo
A distante lua torta
(Que me sorri a alegria de uns intantes)

A velha rua torta
(Que me cobre de irônicas passagens circulares)

Daquela mesma casa de portas tortas
(Que tanto me custa fechar) ...


Aonde inauguro as entradas do mesmo ser-sem-pernas...

Que, à mercê da minha pequena força solitária, carrego enlaçado em minhas costas...
Torto... para não ser morto....


.

{Ouvindo: João Gilberto - É Luxo Só}
,

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

''Ele era o Pequerrucho Fuça-Fuça''

II
"(...)
Não queria brincar. O que queria era encontrar no mundo real a imagem sem substância que a sua alma tão constantemente baralhava. Não sabia onde a descobriria, nem como; mas um pressentimento o advertia sempre de que essa imagem, sem nenhum ato aparente seu, lhe viria ao encontro. Haviam de se encontrar sem alvorôço, como se já se conhecessem um ao outro e tivessem marcado uma entrevista talvez num daqueles portões ou noutro lugar mais secreto. Estariam sós, cercados pela treva e pelo silêncio; e nesse momento de suprema ternura êle seria transfigurado. Dissolver-se-ia dentro de qualquer coisa impálpavel, sob os olhos dela. E depois, então, num momento, se tranfiguraria.
(...)"


IV

" (...)
Ouvia o côro de vozes na cozinha ecoar e multiplicar-se através duma infidável reverbação de coros de infidáveis gerações de crianças; e ouvia em todos os ecos também essa nota persistente de fadiga e de pena. Todos pareciam cansados da vida antes mesmo de entrarem nela. E se recordava de que Newman tinha ouvido nessa nota também nas linhas quebradas de Virgílio "dando expressão, como a voz da própria natureza, a essa pena e a êsse cansaço na esperança ainda que melhores coisas que fôssem a experiência de seus filhos e em todos os tempos".

(...)

O que sentia, agora, era preguiça, ou era enervação, afinal de contas, para argumentar com a sua própria certeza desapaixonada, que o mandamento do amor nos ensina a amar o nosso próximo como a nós mesmos, não com a mesma intesidade e fôrça de amor, mas a amá-lo como a nós mesmos com a mesma espéce de amor.

Arrancou uma frase do seu tesouro e a disse para si próprio, brandamente:
- Um dia de nuvens listradas vindas do mar.
A frase, o dia e a cena harmonizavam-se num côro. Seriam as suas côres?
Consentiu que elas fulgissem e esmaecessem, tinta após tinta: o outro do sol nascente, o vermelho e o verde dos pomares de macieiras, o azul das vagas, a fímbria cinzenta das nuvens algodoadas. Não, não eram as suas côres - era o equilíbrio e a densidade do período em si.
Seria, pois, que êle amava apenas o erguer e o tombar rítimico das palavras mais do que a associação delas em legendas e em côres? Ou seria que, sendo a visão tão fraca como era, e tão tímido de espírito, tirava menos prazer do reflexo do mundo sensível inflamando-os através do prisma da linguagem multicolorida e ricamente ajaezada, do que da contemplação dum mundo interior de emoções pessoais espalhando-se perfeitamente num lúcido período de prosa farta?
Saiu da ponte trêmula para a terra firme, de nôvo.
(...)
Desanimado, ergueu os olhos para as nuvens que vagavam baixas, pedrentas e vindas do mar. Estavam elas viajando através dos desertos do céu qual hoste de nômades em marcha, viajando alto por sôbre a Irlanda, lá para os confins do oeste. A Europa, donde elas chegavam, jazia do outro lado do mar Irlandês, essa Europa de estranhas línguas, de tantas raças circunvaladas, rodeada de estacas, transformada em cidadelas, estrincheirada e disciplinada.
Ouviu uma confusa música dentro de si, como que de memórias e de nomes dos quais tinha uma noção mas que não podia reter sequer por um instante: depois, essa música pareceu retroceder, retroceder, retroceder; e cada vestígio dela assim a retroceder nebulosamente caía sempre uma nota de longa duração, insistente, transpassando como uma êstrela o crepúsculo do siêncio.
(...)"

V

"(...)

Inclinai mais um pouco o rosto, Oona e Aleel,
Para que eu fique assim, como a andorinha a olhar
Do ninho do telhado o resplendor de abril
Antes que a chame a voz do tumultuoso mar.




Uma alegria líquida e macia, como o ruído de muitas àguas, derramava-se por sôbre a sua memória; sentia no coração a doce paz dos espaços silenciosos, tênuemente esmaecidos por sôbre as àguas. A doce paz do silêncio oceânico; a doce paz das andorinhas voando através do mar escuro, por cima das águas oscilantes.

Uma alegria líquida e macia derramava-se por sôbre as palavras onda as voagais maleáveis, roçando sem ruído, se desmanchavam, enrolando-se e desfazendo-se, a sacudirem sempre suas brancas campainhas de ondas em mudas baladas, em mudos dobres e em exclamações suaves como desmaios; e sentia que o angúrio que havia discernido naquelas aves, vagando com flechas, e naquele céu de espaços claros acima dêle, tinha vindo do seu coração como um pássaro que vem duam torreão, mansa e velozmente.
(...)"



{Retrato do Artista Quando Jovem - James Joyce}
.
Powered By Blogger