E perguntou-me se estava de luto. Disse-lhe que mamãe tinha morrido. Como se quisesse saber há quanto tempo, respondi:
- Morreu ontem.
Hesitou um pouco, mas não fez nenhum comentário. Tive vontade de dizer-lhe que a culpa não era minha, mas detive-me porque me pareceu já ter dito a mesma coisa ao meu patrão. Isto nada queria dizer. De qualquer modo, a gente sempre se sente um pouco culpado.
(...)
...
Ao subir, esbarrei na escada com o velho Salamano, meu vizinho de andar. Estava com o seu cachorro. Há oito anos que são sempre vistos juntos. O cocker-spaniel tem uma doença de pele, acho que é sarna, que lhe faz perder quase todo o pêlo e que o cobre de placas e de crostas marrons. De tanto conviverem juntos os dois, num pequeno quarto, o velho Salamano acabou ficando parecido com o cão. Tem crostas avermelhadas no rosto e o cabelo amarelo e ralo. Quando ao cão, esse assimilou do dono um a espécie de aspecto encurvado, o focinho para a frente e o pescoço esticado. Parecem ser da mesma raça e, no entanto, detestam-se.
...
Mas, depois de algum tempo, sentia o ardor do sal queimar a boca. Marie chegou perto, então, e colou-se a mim na água. Colocou a boca contra a minha. A língua dela refrescava-me os lábios e rolamos por instantes nas ondas.
Quando nos vestimos na praia, Marie olhava-me com olhos brilhantes. Beijei-a. A partir desse momento, não falamos mais. Apertei-a contra mim e tivemos pressa de encontrar um ônibus, de voltar, de ir para a minha casa e de nos atirarmos na minha cama. Tinha deixado a janela aberta e era bom sentir a noite de verão escorrer por nossos corpos bronzeados.
...
Perguntou-me, depois, se eu não estava interessado em uma mudança de vida. Respondi que nunca se muda de vida; que, em todo caso, todos se equivaliam, e que a minha aqui não me desagradava
À noite, Marie veio buscar-me e perguntou se eu queria casar-me com ela. Disse que tanto fazia, mas que se ela queria, poderíamos nos casar. Quis, então, saber se eu a amava. Respondi, como aliás já respondera uma vez, que isso nada queria dizer, mas que não a amava.
- Nesse caso, por que casar-se comigo?- perguntou ela.
Expliquei que isso não tinha importância alguma e que, se ela o desejava, nós poderíamos casar. Era ela, aliás, quem o perguntava, e eu me contentava em dizer que sim. Observou, então, que o casamento era uma coisa séria.
- Não - respondi.
Ela se calou durante alguns instantes, olhando-me
- Naturalmente - respondi.
Perguntou então a si própria se me amava, mas eu nada podia saber sobre isso. Depois de outro instante de silêncio, murmurou que eu era uma pessoa estranha, que me amava certamente por isso mesmo, mas que talvez, um dia pelos mesmos motivos eu a decepcionaria.
(...)
VI
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(Fragmentos da primeira parte do livro “O Estrangeiro”, de Albert Camus)
{Ouvindo: Moby - Natural Blues}
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