quinta-feira, 31 de maio de 2007

Capítulo 7,


" Vocês estão juntos na cama, Leitor e Leitora. É chegado, enfim, o momento de tratá-los no plural, tarefa muito comprometedora, pois equivale a considerá-los um só sujeito. É a vocês que falo, volume não bem discernível sob esse lençol amarrotado. Quem sabe depois seguirão cada qual para seu lado, e a narrativa terá que extenuar-se manobrando alternadamente a alavanca de câmbio para mudar de você feminino ao você masculino; mas agora, em vista do fato de que seus corpos procuram encontrar, entre pele e pelo, a adesão mais pródiga de sensações, transmitir e receber vibrações e movimentos ondulantes, ocupar os cheios e os vazios, dado que na atividade mental vocês também concordam em buscar a máxima concordância, agora se pode dirigir a vocês um discurso coerente que os considere uma pessoa una e bicéfala.


Em primeiro ligar, é preciso determinar o campo de ação ou o modo de ser dessa entidade dupla que vocês constituem. A que leva essa identificação entre vocês? Qual é o tema central que retorna em suas variações e modulações? Um tensão que se concentra em não perder nada do próprio potencial, prolongar um estado de reatividade, aproveitar-se de acumulação do desejo do outro para multiplicar a própria carga? Ou, ao contrário, o abandono mais flexível, o explorar a imensidão dos espaços acariciáveis e reciprocamente acariciantes, a dissolução de ser num lago dessa superfície infinitamente tátil?

Em ambas as situações, certamente vocês só existem um em função do outro; mas, para tornar tudo possível, seus respectivos eus devem não tanto anular-se quanto ocupar sem resíduos todo o vazio do espaço mental, poupar-se cada um à máxima taxa de juro ou gastar-se até o último centavo.


Enfim, o que vocês fazem é muito bonito, mas gramaticalmente não muda nada. No momento, em que mais parecem um vocês unitário, são dois vocês separados e mais fechados em sei que antes.
(Isso é certo mesmo agora, quando ainda estão ocupados exclusivamente um com a presença do outro. Imaginemos como será daqui a algum tempo, quando outros fantasmas que não convergem freqüentarem seus espíritos, acompanhando os encontros de seus corpos experimentados pelo hábito.)


Leitora, eis que agora você está sendo lida. Seu corpo está sendo submetido a uma leitura sistemática, mediante canis de informações táteis, visuais, olfativos, e não sem intervenções das pupilas gustativas. Também o ouvido teve participação, atento a seus arquejos e trinados. Em você, o corpo não é apenas um objeto de leitura: faz parte de um conjunto complicado de elementos, que não são todos visíveis nem estão presentes, mas que se manifestam em acontecimentos visíveis e imediatos: o anuviar-se de seus olhos, seu sorriso, as palavras que diz, seu jeito de juntar e separar os cabelos, de tomar a iniciativa e retrair-se, e todos os signos que estão nos confins dos usos e costumes, da memória, da pré-história, da moda, todos os códigos, todos os pobres alfabetos por meio dos quais um ser humano acredita em certos momentos estar lendo outro ser humano.


Também você, o Leitor, é entrementes um objeto de leitura: A Leitora ora lhe passo o corpo em revista como se percorresse o sumário, ora o consulta como se tomada por uma curiosidade rápida e precisa, ora se demora interrogando-o e deixando que uma resposta muda chegue a ela, como se toda inspeção parcial só a interessasse à luz de um reconhecimento especial mais amplo. Às vezes, ela se fixa em detalhes desprezíveis: talvez pequenos defeitos estilísticos, por exemplo o pomo-de-adão saliente ou o jeito que você tem de enfiar a cabeça na cavidade do colo da Leitora, e ela usa isso para estabelecer uma margem de distanciamento, reticência crítica ou intimidade brincalhona; algumas vezes, ao contrário, um detalhe descoberto por acaso é valorizado em demasia, por exemplo a forma de seu queixo ou um jeito especial de morder o ombro da Leitora, e ela toma impulso nesse seu gesto, percorre (vocês percorrem juntos) páginas e páginas de cima a baixo, sem saltar nem uma vírgula. Todavia, em meio á satisfação que você encontra no modo como ela o lê, em todas as citações textuais de sua objetividade física, uma dúvida se insinua: que ela não o leia inteiro como é, mas que o use, que utilize fragmentos de você destacados do contexto para construir um parceiro imaginário, conhecido apenas por ela, na penumbra da semiconsciência, e que o que ela esteja decifrando não seja você, mas sim o visitante apócrifo dos sonhos dela.



Ao contrário da leitura de páginas escritas, a leitura que os amantes fazem de seus corpos (essa concentração de corpo e mente de que os amantes se valem para ir juntos para a cama) não é linear. Começa de um ponto qualquer, salta, repete-se, retrocede, insiste, ramifica-se em mensagens simultâneas e divergentes, torna a convergir, enfrenta momentos de tédio, vira a página, retoma o fio da meada, perde-se. Pode-se reconhecer aí uma direção, um percurso dirigido na medida em que tende a um clímax, e, em vista desse objetivo, preparam-se as fases rítmicas, as escansões, as recorrências de motivo. Mas será o clímax o verdadeiro alvo? Ou a corrida para esse fim não será antes contrariada por outro impulso que se esforça contra a corrente para retardar os instantes, para recuperar o tempo?

Caso se quisesse representar graficamente o conjunto, todo o episódio como seu ápice, seria necessário um modelo em três dimensões, talvez em quatro - não há modelo, nenhuma experiência é passível de repetir-se. É neste aspecto que o abraço e a leitura mais se assemelham: o fato de que abrem em seu interior tempos e espaços diferentes do tempo e do espaço mensuráveis.

..."


(CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno.)




...


{Ouvindo: John Coltrane - In a Sentimental Mood}

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3 comentários:

Ofélia disse...

...para ler e ser lida...
[e decifrada]

Rafael disse...

É fato! A maioria das pessoas buscam o clímax das coisas, e no âmbito dos relacionamentos afetivos isso é típico.

Mas é complicado buscar o clímax de algo não-linear, pois, diferente dos filmes e das novelas, que têm um começo, meio e fim bem determinados, a vida real experimenta situações cíclicas muito mais caóticas e imprevisíveis do que se possa imaginar.

O clímax da nossa história é bem agora, não crê? Tudo neste universo convergiu para esse exato momento (olha o drama), aqui é o ápice! =]

Marília Amorim disse...

O que foi isso que eu fiz?
Hehehehe
Por que esse texto tá assim?
Você quer selecionar ele e vira link?
Como se desfaz isso?
o.O

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